Ano passado, li tardiamente o livro “As Cidades Invisíveis”, de Ítalo Calvino. Na obra, o personagem principal, Marco Polo, descreve para o conquistador mongol Kublai Kahn, cujo império conquistado não pode ver com os próprios olhos, como são as cidades que o compõem. Naqueles diálogos e modos de ver do contador, as cidades ultrapassam conceitos geográficos e ganham vida e lógica únicas.

Não são as riquezas óbvias descritas com destaque e detalhes. Não é quanto de ouro há ali, mas quem canta ao acordar. Não é a extensão do território, mas quem vive intensamente – ou quem dá conta da vida alheia – que faz cada cidade ser o que é. Sobre um dos locais, Marco Polo se prende aos pequenos pontos de cada pedra que forma o arco símbolo do lugar. Quando o Kahn, sem entender a demora naquela descrição, questiona o motivo de tanto falar a respeito de uma simples pedra, a obviedade e o desvelamento da resposta me empolgam: porque ele não seria esse arco sem cada pedra. E não é mesmo cada lugar e cada um a soma delas?

Ao ler, imediatamente pensei no meu painho e no trabalho de preservação de memória que ele faz por Mossoró em sua forma de ver e tratar o que existe. Lembrei deste livro, que dali a alguns dias eu deveria começar a prefaciar. Repassei a sua empolgação com o lançamento das páginas fotográficas sobre as enchentes que já aconteceram em Mossoró. Recebi várias dessas fotos que ele reuniu por e-mail e, em seguida, a ligação: “filha, painho mandou uma foto de enchente pra você. Viu o sorriso de tal pessoa mesmo na adversidade que coisa linda?” ou “Que ar de serenidade. Deve ter sido um dia bom, pois provavelmente agradeceu por não ter acontecido nada pior”.

Empolgação igual a quando começou o trabalho com o site Azougue e, em seguida, os livros Do Bumba, Da Época e Mossoró, Meu Xodó. É preciso, é urgente, cuidar da cultura e memória das cidades, famílias e instituições, e ele agarrou essa missão como algo vital. Não à toa, “herdamos” vários álbuns de família e, se você deixou alguma foto com Caby, por favor, nos procure.

Eu colocaria o nome completo dele bem aqui, mas com medo de um castigo ainda desconhecido, vou chamá-lo de camaradinha. Pois bem. Ele é mesmo, sem dúvida, essa espécie de Marco Polo em meio à tão amada Mossoró. Arrisco dizer que o filtro que tem para ver as coisas é mais raro que seus tamancos. O essencial é mesmo invisível aos olhos e que bom, meu painho, que você sempre soube ver com o coração e com o seu terceiro olho doidinho e mágico.

Alguém poderia ter conquistado, sei lá, o mais alto cargo de uma instituição qualquer, mas certamente não seria por isso, exclusivamente por isso, que mereceria sua admiração. Algo que facilmente acontecia com quem fugisse do hábito e fizesse coisas “mais sensatas”, como decorar e guardar na memórias todas as placas de carro da cidadeou doasse quase todos os bens para começar uma nova vida de cabeça pra baixo, desde que fosse o melhor nisso.

Caby gosta mesmo é de gente e, sobretudo, de gente que goste de gente. Era daquele traço de desatino e imprevisibilidade que faz cada ser único que ele sempre vai lembrar e por isso ser lembrado e amado – além da data de aniversário, claro. Daquele jeito de sorrir alto por uma de suas repetidas piadas, da tranquilidade e habilidade para sair de perrengues, dos dispostos a ajudar, de quem compartilha. Para ele e suas escolhas, todos devemos olhar com uma régua tão reta quanto os caracóis do seu cabelo. Não é esquerda nem direita, muito menos centro. Não é revolucionário e tampouco conservador. Ele era, ele é, e eu só quero sê-lo.

Quando eu estudava no Colégio das Irmãs (Colégio Sagrado Coração de Maria) e crianças acostumadas a algo tão cafona quanto homens usando sapatos me perguntavam insistentemente o porquê de o meu pai usar tamancos (algo de mulher, oras, que absurdo). Como assim o conheci e tamancos eu também usava quando pequena, iguais aos dele, veja só, andei pelas beiradas em busca dessa resposta. Adultos me deram várias explicações que iam da década hippie à possibilidade de o calçado ser usado em forma de marca publicitária pessoal ou protesto.

Insatisfeita com as respostas, precisei interrogá-lo, cheia dedos, para ouvir a resposta definitiva, a real, garanto. “Ah, é só porque eu gosto mesmo”. E era isso. E assim era também para o seu cabelo black power, seu apelido que virou nome, suas camisas 3|4 listradas, sua bebida vermelha chamada Campari (com gelo picadinho, por favor), o cigarro Charm até tirarem de linha, o perfume Lapidus, só sentar à direita em ônibus e avião e gostar muito mais de pessoas canhotas.

Porque ele gostava e isso bastava com uma simplicidade que a gente bem que poderia adotar. Ao ver minhas últimas tatuagens, disse que não achava legal. Eu respondi que também não gostava de tamancos, por isso não usava, de modo que ele só precisaria não fazer uma tatuagem. Ele sorriu, quietinho, e disse que era por aí. Anos depois, eu havia então capturado seu sentido para estética. Se gosta, use.

Foi uma alegria vê-lo estampado no livro “O Bom de Mossoró é Você”, de Sergio Levy e Pacífico Medeiros, como um dos personagens que fazem a cidade que tanto ama. Entre as coisas que mais me marcaram, estão o título que o chama de “um camaradinha do bem”, a resposta dele sobre ser hóspede da vida e só se meter na vida dos outros se for pra ajudar (era bem isso) e dizer que o mais gostava era não saber o que ia fazer daqui a pouco.

>>> Pausa de dois dias para a continuação deste escrito. Pausa para um analgésico que não vem. Pausa para fichas que às vezes não caem e às vezes caem como correnteza brava.

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